quinta-feira, 19 de julho de 2012

6. No Mundo dos Espíritos

Leal de Souza
       Assim que a Umbanda começou a espalhar sua luz pelo Brasil, surgiu juntamente a curiosidade de muitos que ainda não conheciam esse mistério a fundo. Queriam respostas para suas questões. Ouvia-se dizer a respeito de um lugar no Rio de Janeiro, mais precisamente em Niterói, que realizava grandes curas espirituais, ministradas por espíritos de Caboclos e Pretos-Velhos. Era o surgimento de uma nova corrente religiosa no Brasil nomeada Umbanda.
       Zélio de Moraes não escreveu nada sobre a religião que havia ajudado a fundar. Porém, um homem viria para auxiliá-lo da melhor forma possível. Escritor e jornalista, Leal de Souza redigiu uma obra literária sob a qual descrevia, num dos capítulos desse, a sua primeira visita à uma casa religiosa de Umbanda. Nesta visita, com fundo jornalístico e, portanto, profissional, escreveu longo artigo para o jornal A Noite. Na verdade, fazia um descritivo de todas as casas religiosas que trabalhavam no intercâmbio com o plano espiritual. Ao término das entrevistas realizadas, juntou o material e editou, assim, o livro No Mundo dos Espíritos, em 1925, relatando sua visita à Tenda Nossa Senhora da Piedade, no ano de 1924. Vejamos abaixo, portanto, o primeiro relato da Tenda:

O Centro Nossa Senhora da Piedade
A Noite, 7 de Janeiro, 1924
       A falange da Rua Laura de Araujo. - Um louco em uma sessão espírita.
       Atravessando em procura do arrabalde das Neves, a cidade de Niterói, perguntávamos, no bonde, a quanto passageiro ficava ao alcance de nossa voz:
       - Conhece, por ventura, nas Neves, a farmácia do Sr. Zélio?
       - Não.
       - E o Centro Espírita Nossa Senhora da Piedade?
       Quase ao termo da viagem, porém, ouvimos, formulada pelo Sr. Eurico Costa, a dupla resposta afirmativa, e, em companhia desse gentil cavalheiro, cujo destino, nessa noite, era o nosso, fomos, primeiro, à farmácia do presidente daquele centro, e, em seguida, com o farmacêutico, à sede da associação procurada.
Trabalho de desobsessão na Tenda N.S. da Piedade
       Varando, por um corredor, filas compactas de gente, conseguimos aproximarmo-nos da mesa mediúnica, ocupando uma cadeira, à esquerda do presidente, ao lado de uma senhorita que vigiava os médiuns, pronta a socorrê-los, ou auxiliá-los, em caso de transe violento.
       Não conhecíamos uma só das pessoas presentes, e a nossa entrada não foi vista pelo diretor da reunião, Dr. José Meirelles, que, no momento, de olhos fechados, fazia uma prece.
       Apenas ocupamos o lugar designado pelo nosso condutor, ao findar a oração do dirigente, a senhorita Zaíra Heintze, num grande pulo, e em transe, tentou levantar-se e sair, mas os seus movimentos eram desordenados e incoerentes. Auxiliou-a  a senhorita de vigia, e a médium, atirando a cabeça para trás, sacudia, como um penacho, os cabelos cortados, e batia com as mãos sobre a mesa, e, a babar-se, continuou a bater com as mãos. Nessa incômoda posição permaneceu por mais de meia-hora, discutindo, por vezes, com o Sr. Meirelles. As suas frases, porém, não passavam de repetições pejorativas ou raivosas das do diretor.
       - És um espírito infeliz!
       - Qual infeliz, seu hipócrita.
       Em meio desse combate, entrou em transe o Sr. Zélio de Moraes e, saudado como sendo o Caboclo das Sete Encruzilhadas, chefe espiritual do famoso centro, fez, em linguagem enérgica, uma vibrante exortação, suplicando e ordenando a intensificação da fé.
       O médium, nesse transe, parecia dividido, em seu corpo, em duas partes, pela desconexão de seus movimentos. Tinha ereto e firme o busto, alçada a cabeça, o rosto torneado em desenho vigoroso, os braços agitados em gestos apropriados às expressões de seus lábios, mas da cintura pra baixo, um temor convulsivo, abalando-o, fazia-lhe bater com os pés nas taboas do chão, produzindo um rumor apressado de caixa de guerra em célere ruflo.
       Surpreendendo o Dr. Meirelles, o médium pediu para apertar-nos a mão, e, sob olhar espantado da assistência, acercando-nos do Sr. Zélio, ouvimos:
       - Pode dizer que apertou a mão de um espírito. A minha esquerda, está uma irmã que entrou aqui como tuberculosa e à minha direita um irmão vindo do hospício. Curou-os, aos dois, Nossa Senhora da Piedade. Pode ouvi-los. Junto ao senhor, naquele canto, está o espírito de uma senhora, que diz ser sua mãe.
       - Deve ser engano. Nossa mãe, graças a Deus, vive e goza saúde.
       Era a terceira vez que, numa sessão espírita, médiuns em transe acusavam a presença, ao nosso lado, de uma senhora que afirmavam eles, dizia ser nossa mãe. O Caboclo das Sete Encruzilhadas, porém, bradou:
       - Quem é então? Tem de falar! Há de incorporar e dizer quem é.
       Despertou-se então o Sr. Zélio de Moraes e o Dr. Meirelles recomeçou o seu esquisito debate com a senhorita Zaíra. Ao fim de minutos, caíram em transe simultâneo aquele médium e uma moça clara, de bom corpo, vestida com elegância. Esta saltou com fúria e tombou de flanco, batendo rijamente a cabeça no solo, onde, por momentos, ficou estendida. Tornaram-se mais bruscos, então, os movimentos da senhorita Zaíra.
       Iniciando, com calma, a conversa com o Sr. Meirelles, o médium Zélio, entrou, depois, a queixar-se de violências que lhe estavam fazendo dizia, caboclos e pretos invisíveis para nós, e, acendendo-se em cólera contra a nossa pessoa, chamando-nos “careca”, disse que,  com os seus companheiros ali incorporados as duas médiuns, anda a seguir-nos, com o intuito de prejudicar o nosso serviço e a nossa vida, desde que fizemos, nesta reportagem, uma injustiça ao centro da Rua Laura de Araujo.
       O Dr. Meirelles, começando a compreender quem éramos, convidou a entidade presente a definir a injustiça por nós praticada. A resposta foi que havíamos dito que, naquele centro, o trabalho espírita é remunerado.
       - Mas é ou não verdade?
       - Não é !
       Arriscamos, então uma frase em nossa defesa , contestando-nos o médium:
       - Ninguém é obrigado a dar. Dá quem quer.
       - Foi o que noticiamos.
       - Mas não devia ter noticiado! - objetou o médium.
       - Por quê ? O jornalista não cometeu uma injustiça. Disse uma verdade.
       - Mas essa verdade prejudicou o Centro fazendo com que muita gente o abandonasse.
       A moça clara, de pé, debatia-se em fúria, segura, pelos braços, por dois cavalheiros e a senhorita Zaíra protestava:
       - O Encruzilhada não é aquele que esteve aí. Sou eu !
       O médium em transe, dirigindo-se ao diretor dos trabalhos, considerava:
       - Você acha que o espiritismo não pode ser pago. Mas quem não tem emprego, como é que há de fazer espiritismo ?
       E, continuando, desenvolveu, em favor do centro da Rua Laura de Araujo, argumentos semelhantes aos que ouvimos, no Centro José de Araújo, à rua Dr. Bulhões, formulado por um dos dirigentes daquela associação. Dirigiu-se, em seguida, às duas moças, chamando-as, respectivamente, João e Eduardo. Acalmou-se a senhorita Zaíra, e a outra, a clara, escapando-se dos braços que a amparavam, caiu sentada na cadeira.
       - Bem. Vou-me embora ! Vamos, João !
       Vamos, Eduardo ! Convidou o Sr. Zélio.
       Soergueram-se as duas moças, mas o Dr. Meirelles declarou:
Trabalho dos Caboclos na Tenda Nossa Senhora Piedade
       - É inútil ! Não saireis daqui em estado de perseguir alguém. Escutai-me, e proferiu uma prece comovedora.
       - Sou Sofia, disse o Sr. Zélio. Se for para nosso bem, iremos. Se formos enganados, pagarás. Vamos, João. Vamos Eduardo.
       Despertaram-se, então, os três médiuns. Pediu concentração o diretor, e o Sr. Zélio, novamente em transe, curvado, numa linguagem deturpada, dizendo ser Pai Antônio, tomou as mãos de um enfermo, e, acompanhado pelos presentes, começou a cantar:“Dá licença, Pai Antônio, Eu não venho visitar, Eu estou bastante doente, Venho pra me curar”.
       Findo esse ato, e depois de um transe quase mudo da senhorita Severina de Souza, havendo o guia, como se disse, mandado que se realizasse um trabalho especial em benefício de um louco fugido do hospício e ali presente, declarou-se encerrada a sessão.
Retirando-se a assistência, foram afastados os bancos da sala e iniciados os preparativos para o trabalho especial. Só ficaram no recinto os médiuns, o louco, três homens que o acompanhavam e nós.
       Uma senhorita, com um defumador fumegante, percorreu a sala, envolvendo cada pessoa em ondas de fumaça aromática, e a cantar, acompanhada pelos circunstantes,uma canção cujo estribilho era:“Quem está de ronda é S. Jorge, S. Jorge é que está de guarda!”
       Entregou o defumador a um cavalheiro, que saiu a agitá-lo, caminhou em duas direções e, voltando fechou a porta.
       O Sr. Zélio, assumindo a direção do trabalho, ocupou, ao lado de seu pai, perto da parede, a cabeceira da mesa, ficando um médium. Por detrás do enfermo, “fechando a concentração”, sentaram-se o Dr. Meirelles e uma senhorita, e, formando a terceira fila, os três companheiros do doente, ladeavam a mesa as médiuns Severina de Souza e Maria Isabel Morse, enfrentando a senhorita Zaíra e a elegante moça clara. A jovem que empunhara o defumador e nós que ocupamos lugares à esquerda da mesa.
Falando ao louco da mesa, disse o Sr. Zélio :
       - Vamos fazer um trabalho para o senhor ficar bom. Pense em Deus. Como o senhor não pode fazer uma idéia de Deus, veja se consegue reproduzir na mente a imagem de Jesus.
       Fez, com fervor, três orações; a Deus, a N.S. da Piedade, e ao Caboclo das Sete Encruzilhadas, e, convidando para começar, cantou, acompanhado pelos demais:“Santo Antônio é ouro fino. Arria a bandeira. Vamos começar!”
       O canto, monótono, melancólico, desdobrando-se em toada embaladora parecia acariciar as almas. Não faltava majestade ao ambiente. O louco, de súbito, rompeu numa cantoria de sons inarticulados, e entraram em transe, atuadas,- disseram-nos, por protetores, as médiuns Isabel e Zaíra. Esta informou, então, ao Sr. Zélio que, no momento, duas entidades agiam sobre o doente.
       - Deixa o aparelho e faz incorporar em um deles. Mando o outro para outra máquina. Conto contigo.
       Instantaneamente, recobrou-se e caiu em novo transe a senhorita Zaíra.  Sacundindo-se, a vociferar, quis deixar a cadeira, mas foi dominada pela senhorita de vigia. Ao mesmo tempo, dando uma ruidosa gargalhada, a moça clara, num pulo, atirava-se de costas no solo, enquanto o louco, asserenando a face, emudecida.
       Entraram em discussão a senhorita Zaíra, que dizia haver sido “o padre Alfredo, vigário do Meyer”, e o Sr. Zélio. Sustentava aquela que perseguir alguém e encaminhá-lo, pelo sofrimento, para o progresso espiritual; e sofria ardente contestação de parte do último.
De pronto abriu o presidente “novo ponto” cantando o coro “Santo Antônio é Santo maior”. Erguendo-se a pouco e pouco do chão, a moça clara ocupou a cadeira, e, olhos fechados, encarando Zaíra, acusou:
       - Mentiste! Nunca praticaste a caridade! Não te acompanho mais! Tu me arrastaste!
       Falando aos protetores, pediu ao Sr. Zélio que levassem aqueles irmãos, “para o raio de luz” e o cântico entoado pelo coro reproduzia aos nossos ouvidos uma canção da macumba.
       Sobre esse coro, cantando a meia voz, em tom arrastado, pairou, por alguns momentos, grave, em tom forte, vibrando, um canto que saia dos lábios de Zaíra, e começava:
       “Oremos. Glória in excelsis Déo !”
         Variou, ainda uma vez, o coro, a senhorita Zaíra gritou que iria, mas voltaria; a moça clara, em gemidos lamentosos, implorou perdão, e, as duas, quase tombando, saíram de transe, enquanto todos bradavam:
        - Viva DEUS!
       Mas, sem demora, encurvaram-se em novo transe as duas médiuns. Ambas são moças muito gentis, mas, de face subitamente deformada, com os maxilares avançando, ficaram quase horríveis. Caminhando dobradas em passos arrastados, com a cabeça abatida na linha dos joelhos, percorreram a sala e fizeram passes no louco.
       Zaíra, que descalçara os pés, e, por estar em transe, não havia, em estado consciente, assistido na primeira sessão, ao caso mediúnico relativo à Rua Laura de Araujo, agora, na segunda, conversando conosco, fazia referências aos três espíritos então reputados presentes.
       Tornadas as duas médiuns ao estado de vigília, o Sr. Zélio perguntou ao louco se estava melhor.
       - Estou bem, respondeu ele serenamente.
       - Bem. Vamos encerrar, disse o presidente, e o coro rompeu:“Santo Antônio é ouro fino, Suspende a bandeira, Vamos encerrar”.

       Todavia, o primeiro livro de Leal de Souza a abordar o tema Umbanda foi na obra O Espiritismo, a Magia e as Sete Linhas de Umbanda, hoje pertencente a editora Conhecimento.

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