Leal de Souza |
Zélio de Moraes não escreveu nada sobre a religião que havia ajudado a fundar. Porém, um homem viria para auxiliá-lo da melhor forma possível. Escritor e jornalista, Leal de Souza redigiu uma obra literária sob a qual descrevia, num dos capítulos desse, a sua primeira visita à uma casa religiosa de Umbanda. Nesta visita, com fundo jornalístico e, portanto, profissional, escreveu longo artigo para o jornal A Noite. Na verdade, fazia um descritivo de todas as casas religiosas que trabalhavam no intercâmbio com o plano espiritual. Ao término das entrevistas realizadas, juntou o material e editou, assim, o livro No Mundo dos Espíritos, em 1925, relatando sua visita à Tenda Nossa Senhora da Piedade, no ano de 1924. Vejamos abaixo, portanto, o primeiro relato da Tenda:
O Centro Nossa Senhora da Piedade
A Noite, 7 de Janeiro, 1924
A Noite, 7 de Janeiro, 1924
A falange da Rua Laura de Araujo. - Um louco em uma sessão
espírita.
Atravessando em
procura do arrabalde das Neves, a cidade de Niterói, perguntávamos, no bonde, a
quanto passageiro ficava ao alcance de nossa voz:
- Conhece, por ventura,
nas Neves, a farmácia do Sr. Zélio?
- Não.
- E o Centro Espírita
Nossa Senhora da Piedade?
Quase ao termo
da viagem, porém, ouvimos, formulada pelo Sr. Eurico Costa, a dupla resposta
afirmativa, e, em companhia desse gentil cavalheiro, cujo destino, nessa noite,
era o nosso, fomos, primeiro, à farmácia do presidente daquele centro, e, em
seguida, com o farmacêutico, à sede da associação procurada.
Trabalho de desobsessão na Tenda N.S. da Piedade |
Não conhecíamos
uma só das pessoas presentes, e a nossa entrada não foi vista pelo diretor da
reunião, Dr. José Meirelles, que, no momento, de olhos fechados, fazia uma
prece.
Apenas ocupamos
o lugar designado pelo nosso condutor, ao findar a oração do dirigente, a
senhorita Zaíra Heintze, num grande pulo, e em transe, tentou levantar-se e
sair, mas os seus movimentos eram desordenados e incoerentes. Auxiliou-a
a senhorita de vigia, e a médium, atirando a cabeça para trás, sacudia,
como um penacho, os cabelos cortados, e batia com as mãos sobre a mesa, e, a
babar-se, continuou a bater com as mãos. Nessa incômoda posição permaneceu por
mais de meia-hora, discutindo, por vezes, com o Sr. Meirelles. As suas frases,
porém, não passavam de repetições pejorativas ou raivosas das do diretor.
- És um
espírito infeliz!
- Qual infeliz,
seu hipócrita.
Em meio desse
combate, entrou em transe o Sr. Zélio de Moraes e, saudado como sendo o Caboclo
das Sete Encruzilhadas, chefe espiritual do famoso centro, fez, em linguagem
enérgica, uma vibrante exortação, suplicando e ordenando a intensificação da
fé.
O médium, nesse
transe, parecia dividido, em seu corpo, em duas partes, pela desconexão de seus
movimentos. Tinha ereto e firme o busto, alçada a cabeça, o rosto torneado em
desenho vigoroso, os braços agitados em gestos apropriados às expressões de
seus lábios, mas da cintura pra baixo, um temor convulsivo, abalando-o,
fazia-lhe bater com os pés nas taboas do chão, produzindo um rumor apressado de
caixa de guerra em célere ruflo.
Surpreendendo o
Dr. Meirelles, o médium pediu para apertar-nos a mão, e, sob olhar espantado da
assistência, acercando-nos do Sr. Zélio, ouvimos:
- Pode dizer
que apertou a mão de um espírito. A minha esquerda, está uma irmã que entrou
aqui como tuberculosa e à minha direita um irmão vindo do hospício. Curou-os,
aos dois, Nossa Senhora da Piedade. Pode ouvi-los. Junto ao senhor, naquele
canto, está o espírito de uma senhora, que diz ser sua mãe.
- Deve ser
engano. Nossa mãe, graças a Deus, vive e goza saúde.
Era a terceira
vez que, numa sessão espírita, médiuns em transe acusavam a presença, ao nosso
lado, de uma senhora que afirmavam eles, dizia ser nossa mãe. O Caboclo das
Sete Encruzilhadas, porém, bradou:
- Quem é então?
Tem de falar! Há de incorporar e dizer quem é.
Despertou-se
então o Sr. Zélio de Moraes e o Dr. Meirelles recomeçou o seu esquisito debate
com a senhorita Zaíra. Ao fim de minutos, caíram em transe simultâneo aquele
médium e uma moça clara, de bom corpo, vestida com elegância. Esta saltou com
fúria e tombou de flanco, batendo rijamente a cabeça no solo, onde, por
momentos, ficou estendida. Tornaram-se mais bruscos, então, os movimentos da
senhorita Zaíra.
Iniciando, com
calma, a conversa com o Sr. Meirelles, o médium Zélio, entrou, depois, a
queixar-se de violências que lhe estavam fazendo dizia, caboclos e pretos
invisíveis para nós, e, acendendo-se em cólera contra a nossa pessoa,
chamando-nos “careca”, disse que, com os seus companheiros ali
incorporados as duas médiuns, anda a seguir-nos, com o intuito de prejudicar o
nosso serviço e a nossa vida, desde que fizemos, nesta reportagem, uma
injustiça ao centro da Rua Laura de Araujo.
O Dr.
Meirelles, começando a compreender quem éramos, convidou a entidade presente a
definir a injustiça por nós praticada. A resposta foi que havíamos dito que,
naquele centro, o trabalho espírita é remunerado.
- Mas é ou não
verdade?
- Não é !
Arriscamos,
então uma frase em nossa defesa , contestando-nos o médium:
- Ninguém é
obrigado a dar. Dá quem quer.
- Foi o que
noticiamos.
- Mas não devia
ter noticiado! - objetou o médium.
- Por quê ? O
jornalista não cometeu uma injustiça. Disse uma verdade.
- Mas essa
verdade prejudicou o Centro fazendo com que muita gente o abandonasse.
A moça clara,
de pé, debatia-se em fúria, segura, pelos braços, por dois cavalheiros e a
senhorita Zaíra protestava:
- O
Encruzilhada não é aquele que esteve aí. Sou eu !
O médium em
transe, dirigindo-se ao diretor dos trabalhos, considerava:
- Você acha que
o espiritismo não pode ser pago. Mas quem não tem emprego, como é que há de
fazer espiritismo ?
E, continuando,
desenvolveu, em favor do centro da Rua Laura de Araujo, argumentos semelhantes
aos que ouvimos, no Centro José de Araújo, à rua Dr. Bulhões, formulado por um
dos dirigentes daquela associação. Dirigiu-se, em seguida, às duas moças,
chamando-as, respectivamente, João e Eduardo. Acalmou-se a senhorita Zaíra, e a
outra, a clara, escapando-se dos braços que a amparavam, caiu sentada na
cadeira.
- Bem. Vou-me
embora ! Vamos, João !
Vamos, Eduardo
! Convidou o Sr. Zélio.
Soergueram-se
as duas moças, mas o Dr. Meirelles declarou:
Trabalho dos Caboclos na Tenda Nossa Senhora Piedade |
- Sou Sofia,
disse o Sr. Zélio. Se for para nosso bem, iremos. Se formos enganados, pagarás.
Vamos, João. Vamos Eduardo.
Despertaram-se,
então, os três médiuns. Pediu concentração o diretor, e o Sr. Zélio, novamente
em transe, curvado, numa linguagem deturpada, dizendo ser Pai Antônio, tomou as
mãos de um enfermo, e, acompanhado pelos presentes, começou a cantar:“Dá licença, Pai Antônio, Eu não venho visitar, Eu estou bastante doente, Venho pra me curar”.
Findo esse ato,
e depois de um transe quase mudo da senhorita Severina de Souza, havendo o
guia, como se disse, mandado que se realizasse um trabalho especial em
benefício de um louco fugido do hospício e ali presente, declarou-se encerrada
a sessão.
Retirando-se a assistência, foram afastados os bancos da
sala e iniciados os preparativos para o trabalho especial. Só ficaram no
recinto os médiuns, o louco, três homens que o acompanhavam e nós.
Uma senhorita,
com um defumador fumegante, percorreu a sala, envolvendo cada pessoa em ondas
de fumaça aromática, e a cantar, acompanhada pelos circunstantes,uma canção
cujo estribilho era:“Quem está de ronda é S. Jorge, S. Jorge é que está de guarda!”
Entregou o
defumador a um cavalheiro, que saiu a agitá-lo, caminhou em duas direções e,
voltando fechou a porta.
O Sr. Zélio,
assumindo a direção do trabalho, ocupou, ao lado de seu pai, perto da parede, a
cabeceira da mesa, ficando um médium. Por detrás do enfermo, “fechando a
concentração”, sentaram-se o Dr. Meirelles e uma senhorita, e, formando a
terceira fila, os três companheiros do doente, ladeavam a mesa as médiuns
Severina de Souza e Maria Isabel Morse, enfrentando a senhorita Zaíra e a
elegante moça clara. A jovem que empunhara o defumador e nós que ocupamos
lugares à esquerda da mesa.
Falando ao louco da mesa, disse o Sr. Zélio :
- Vamos fazer
um trabalho para o senhor ficar bom. Pense em Deus. Como o senhor não
pode fazer uma idéia de Deus, veja se consegue reproduzir na mente a imagem de
Jesus.
Fez, com
fervor, três orações; a Deus, a N.S. da Piedade, e ao Caboclo das Sete
Encruzilhadas, e, convidando para começar, cantou, acompanhado pelos demais:“Santo Antônio é ouro fino. Arria a bandeira. Vamos começar!”
O canto,
monótono, melancólico, desdobrando-se em toada embaladora parecia acariciar as
almas. Não faltava majestade ao ambiente. O louco, de súbito, rompeu numa
cantoria de sons inarticulados, e entraram em transe, atuadas,- disseram-nos,
por protetores, as médiuns Isabel e Zaíra. Esta informou, então, ao Sr. Zélio
que, no momento, duas entidades agiam sobre o doente.
- Deixa o
aparelho e faz incorporar em um deles. Mando o outro para outra máquina. Conto
contigo.
Instantaneamente,
recobrou-se e caiu em novo transe a senhorita Zaíra. Sacundindo-se, a vociferar, quis deixar a
cadeira, mas foi dominada pela senhorita de vigia. Ao mesmo tempo, dando uma
ruidosa gargalhada, a moça clara, num pulo, atirava-se de costas no solo,
enquanto o louco, asserenando a face, emudecida.
Entraram em discussão a senhorita Zaíra, que dizia haver
sido “o padre Alfredo, vigário do Meyer”, e o Sr. Zélio. Sustentava aquela que
perseguir alguém e encaminhá-lo, pelo sofrimento, para o progresso espiritual;
e sofria ardente contestação de parte do último.
De pronto abriu o presidente “novo ponto” cantando o coro “Santo
Antônio é Santo maior”. Erguendo-se a pouco e pouco do chão, a moça clara
ocupou a cadeira, e, olhos fechados, encarando Zaíra, acusou:
- Mentiste!
Nunca praticaste a caridade! Não te acompanho mais! Tu me arrastaste!
Falando aos
protetores, pediu ao Sr. Zélio que levassem aqueles irmãos, “para o raio de
luz” e o cântico entoado pelo coro reproduzia aos nossos ouvidos uma canção da
macumba.
Sobre esse
coro, cantando a meia voz, em tom arrastado, pairou, por alguns momentos,
grave, em tom forte, vibrando, um canto que saia dos lábios de Zaíra, e
começava:
“Oremos. Glória
in excelsis Déo !”
Variou, ainda
uma vez, o coro, a senhorita Zaíra gritou que iria, mas voltaria; a moça clara,
em gemidos lamentosos, implorou perdão, e, as duas, quase tombando, saíram de
transe, enquanto todos bradavam:
- Viva DEUS!
Mas, sem
demora, encurvaram-se em novo transe as duas médiuns. Ambas são moças muito
gentis, mas, de face subitamente deformada, com os maxilares avançando, ficaram
quase horríveis. Caminhando dobradas em passos arrastados, com a cabeça abatida
na linha dos joelhos, percorreram a sala e fizeram passes no louco.
Zaíra, que descalçara os pés, e, por estar em transe, não
havia, em estado consciente, assistido na primeira sessão, ao caso mediúnico
relativo à Rua Laura de Araujo, agora, na segunda, conversando conosco, fazia
referências aos três espíritos então reputados presentes.
Tornadas as
duas médiuns ao estado de vigília, o Sr. Zélio perguntou ao louco se estava
melhor.
- Estou bem,
respondeu ele serenamente.
- Bem. Vamos
encerrar, disse o presidente, e o coro rompeu:“Santo Antônio é ouro fino, Suspende a bandeira, Vamos encerrar”.
Todavia, o primeiro livro de Leal de Souza a abordar o tema Umbanda foi na obra O Espiritismo, a Magia e as Sete Linhas de Umbanda, hoje pertencente a editora Conhecimento.
Achei o texto bem bacana, mas de difícil compreensão :(
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